Artigo - Relações entre os gêneros, poder e violência: formação de professoras e professores

Relações entre os gêneros, poder e violência: formação de professoras e professores

SANTOS, Dayana Brunetto Carlin dos – SEED/PR1
BOEING, Sandra Mara de Freitas – SEED/PR2

Área Temática: Formação de Professores
Agência Financiadora: Não contou com financiamento
Resumo
A construção histórica do conceito relacional de gênero, as relações de poder e a violência são temas recorrentes e assuntos complexos, que afetam diretamente o processo educativo. Interrelacionam-se na sociedade contemporânea e, conseqüentemente, no ambiente escolar. A escola, muitas vezes, reproduz ações conservadoras, estereotipadas, sexistas e intencionais, que acabam por naturalizar determinados comportamentos, transformando-se num canal que propicia  a disseminação do racismo, da intolerância, do preconceito e da discriminação. Uma das possibilidades para se problematizar a abordagem dessas questões, pautadas numa discussão mais crítica, está justamente  na formação inicial e continuada  de professoras e professores no sentido de desconstruir algumas concepções fundamentadas, muitas vezes, em valores e crenças pessoais em detrimento de uma educação laica que considere os Direitos Humanos. A educação pautada nos direitos humanos constitui-se em  uma preocupação de âmbito federal e estadual, já que os sujeitos como detentores de direitos, têm e devem ter no princípio da dignidade da pessoa humana o seu maior fundamento; portanto, todas as pessoas devem ser tratadas com dignidade, não importando a sua raça, etnia, idade, credo, cor, gênero, profissão ou, ainda, a sua orientação sexual. Diante disso e considerando especialmente a diversidade cultural e a transformação social, a Secretaria de Estado da Educação do Paraná em suas ações, no que se refere à discussão crítica da Sexualidade nas escolas, compreende que as relações entre os gêneros, o poder e a violência constituem-se em assuntos pertinentes a serem inseridos na formação continuada das professoras e professores3, bem como dos profissionais da educação em geral.

Palavras-chave: gênero, poder, violência, educação em Direitos Humanos, formação continuada.

Introdução

Com as revoluções modernas que estabeleceram modelos e padrões para grande parte do mundo ocidental, vários conceitos vêm se alterando. As definições de gêneros, sexualidades, violências, bem como outros fundamentos constitutivos da sociedade e da realidade escolar brasileira também modificaram-se.
Para ilustrar essa idéia, pode-se citar o conceito de gênero que nem sempre foi compreendido da mesma forma. Ao analisar os Estudos de Mulheres, pode-se perceber na fala de Guacira Lopes Louro4, que em geral, discutiram gênero como sinônimo do feminino. No entanto, a conceituação de gênero como sinônimo de mulher não propicia uma reflexão mais crítica e complexa, como no caso das relações entre os sujeitos no processo de escolarização. Portanto, para o desenvolvimento das discussões aqui apresentadas é importante a compreensão de uma conceituação de gênero como relacional,  conforme a análise dos Estudos Feministas contemporâneos. Pretende-se com isso um recorte e uma demarcação de uma postura teórica, mas reconhece-se que décadas de História não podem ser resumidas em poucas linhas de texto.
Nesse sentido, Guacira Lopes Louro (1998), afirma que:
[...] os estudos iniciais (de mulheres) se constituem, muitas vezes, em descrições das condições de vida e de trabalho das mulheres em diferentes instâncias e espaços. Estudos das áreas de Antropologia, Sociologia, Educação, Literatura, etc. apontam ou comentam as desigualdades sociais, políticas, econômicas, jurídicas, denunciando a opressão e submetimento feminino. Contam, criticam e, algumas vezes, celebram as “características” tidas como femininas. (p. 18, grifos da autora).

    Com isso, o conceito de gênero adquire uma característica de relação entre o feminino e o masculino e passa a ser compreendido como uma construção histórica, cultural e social que manifesta-se no âmbito escolar. Segundo Guacira Lopes Louro (1998): “O conceito (de gênero) pretende se referir ao modo como as características sexuais são compreendidas e representadas ou, então, como são 'trazidas para a prática social e tornadas parte do processo histórico'”(p.23, grifos da autora).
Pode-se observar então, nas relações entre os gêneros, aspectos determinantes de polarizações hierarquizadas e binárias entre uma determinada forma de feminino e de masculino. É como se outras formas de feminino e masculino, que não aquelas legitimadas pelo discurso ou práticas sociais vigentes, não fossem legítimas.
    Essa lógica insere-se num contexto de referenciais hegemônicos5 perpetrados pela cultura e produtores de uma hierarquia entre os gêneros, fundamentada em preceitos biologizantes que determinam um padrão binário de relações em que as meninas são entendidas como frágeis, meigas, dóceis e submissas e os meninos como fortes, agressivos, durões e dominadores. (LOURO, 1998). Conseqüentemente, as pessoas que não se encaixam nesses padrões são logo identificadas como diferentes e estranhas e, não raras vezes, tornam-se vítimas de preconceito, discriminações e violências simbólicas, institucionais e sociais.
    De acordo com Guacira Lopes Louro, (1998): “Para que se compreenda o lugar e as relações de homens e mulheres numa sociedade importa observar não exatamente seus sexos, mas sim tudo o que socialmente se construiu sobre os sexos”.(p. 21).
Depreende-se disto que o ambiente escolar se constitui num contexto propício, não só para a propagação de concepções sociais fundamentadas em referenciais hegemônicos, mas também das ali produzidas, que promovem as diferenças como produtoras de desigualdades sociais. Em relação aos referenciais hegemônicos, Tomaz Tadeu da Silva (1993), afirma que é preciso “ver a Educação, a Pedagogia e o Currículo como campos de luta e conflito simbólico, como arenas contestadas na busca da imposição de significados e da hegemonia cultural” (p.122).
Nas discussões sobre sexualidade existe também uma ampla variedade de concepções. Alguns referenciais, principalmente os provenientes da psicologia e psicanálise, podem conferir o entendimento da sexualidade como energia vital ou como sentimentos e comportamentos e, não raras vezes, trabalham com dinâmicas de grupo e atividades psicologizantes na escola.     Entretanto, a sexualidade constitui-se numa construção histórica, cultural e social. Com isso, pode-se considerar que ela configura-se como uma categoria de análise mais ampla, que considera os referenciais de classe, gênero, raça/etnia e diversidade sexual, bem como as relações de poder, os aspectos sociais, históricos, políticos, econômicos, éticos, étnicos e religiosos. A sexualidade compreende também os conceitos de linguagem, corpo e cultura. Portanto, como outros saberes, não é dada ou “natural”, mas sim construída pelas sociedades intencionalmente.
Ao tratar construções sociais como sexualidade ou gênero como naturais, estamos restringindo seus significados e nos equivocando pois, como afirma Deborah  Britzman (1999), “Foucault nos propicia uma outra forma de pensar sobre a sexualidade: não como desenvolvimento ou identidade mas como historicidade e relação.”(p. 100).
 A partir desta concepção, pode-se compreender que a sexualidade, inerente aos sujeitos, está presente na sociedade e nas diversas instituições sociais, dentre essas a escola. Nesse sentido, Guacira Lopes Louro (1998), afirma que “[a] sexualidade está na escola porque ela faz parte dos sujeitos, ela não é algo que possa ser desligado ou algo do qual alguém possa se ‘despir’” (p. 81, grifos da autora).
Numa perspectiva foucaultiana, um elemento determinante para uma análise mais crítica dessas relações é o conceito de poder como relação, difuso, cambiante e pulverizado na sociedade e nas instituições disciplinadoras e normalizantes como por exemplo a própria escola. De acordo com Guacira Lopes Louro (1998) a escola reflete e reproduz as concepções sociais de gênero e sexualidade, mas também as produz: “Podemos estender as análises de Foucault, que demonstraram o quanto as escolas ocidentais se ocuparam de tais questões desde seus primeiros tempos, aos cotidianos escolares atuais, nos quais podemos perceber o quanto e como se está tratando (e constituindo) as sexualidades dos sujeitos” (p. 81).
No entanto, as manifestações de poder não se expressam somente no campo sociológico das relações humanas. São da mesma forma caracterizadas pelas nossas escolhas lingüísticas e sua utilização. Num primeiro momento pode parecer uma discussão superficial ou mesmo uma mania de feminista, diante de tantas problemáticas educativas mais sérias, de acordo com alguns discursos recorrentes em educação. No entanto, Guacira Lopes Louro (1998) nos aponta que “[t]emos de estar atentos/as, sobretudo, para nossa linguagem, procurando perceber o sexismo, o racismo e o etnocentrismo que ela freqüentemente carrega e institui” (p. 64). Com isso pode-se entender que uma ação tão corriqueira na escola como o uso da linguagem pode sim ser excludente e gerar violência.
Nesse sentido, cabe ressaltar as violências como outro fator preponderante na sociedade contemporânea, que acaba por apresentar-se no âmbito escolar. A violência escolar é, sem  sombra de dúvidas, um tema recorrente e um assunto complexo, que afeta diretamente o processo educativo. Ela não se constitui num fenômeno peculiar à sociedade brasileira, pode ser também observada entre diversos sujeitos sociais em condições históricas e culturais diversas, nas sociedades espalhadas por todo o mundo, bastando para tanto observar a recorrência desses assuntos nos meios de comunicação, que retratam diariamente algum tipo de violência praticada nesse âmbito.
As condutas violentas no interior da instituição escolar, que permeiam todas a relações sociais e afetam profundamente a comunidade escolar (alunas/os, professoras/es, diretora/es, funcionárias/os, mães e pais),  têm várias causas. Para o sociólogo e antropólogo francês Pierre Bourdieu, que propôs uma Sociologia científica centrada sobretudo na cultura escolar, “é preciso conhecer os mecanismos tácitos da dominação e da manutenção das hierarquias sociais que produzem  tanto as exclusões como as prerrogativas de poder”. (Gilson Medeiros PEREIRA, p. 6).
Além dos múltiplos fatores que a causam, têm-se também variadas formas de violência cotidiana que podem ser observadas nas salas de aula. Muitas vezes, essas condutas presentes nas relações pedagógicas ocorrem de maneira explícita, mas, em muitos casos, são veladas, sutis e até dissimuladas, vindo na contramão da “visão otimista da escola enquanto um espaço social, democrático e emancipador.”(Cristina Carta de MEDEIROS, 2007, p. 17).
Pode-se depreender disto que o ambiente escolar reproduz ações conservadoras, estereotipadas, sexistas e intencionais, que naturalizam determinados comportamentos e contribuem com  a violência implícita, sendo um canal propício para a disseminação do racismo, da intolerância, do preconceito, e da discriminação, pois nesses casos velados os sujeitos envolvidos, na sua grande maioria, não reconhecem esses gestos como sendo intencionalmente depreciativos e violentos.
Nessa perspectiva, os téoricos argumentam sobre as práticas pedagógicas e as violências intrínsecas  à ação educativa nas escolas:

No interior do sistema de ensino, Bordieu e Passeron (1973) localizam que ‘toda ação pedagógica é objetivamente uma violência simbólica enquanto uma posição, por um poder arbitrário, de um arbitrário cultural.’ Assim, a ação pedagógica, exercida pela autoridade pedagógica e efetivada pela comunicação pedagógica, não no sentido informativo em que o discurso do professor possui uma autoridade institucionalizada, aparece com uma instância de legitimação das relações de força no seio do espaço social, legitimando também a hierarquia social que repousa no arbitrário cultural, contribuindo para os fundamentos da reprodução cultural e social. Este arbitrário cultural escolar torna-se um instrumento da dominação simbólica por um determinado uso social da cultura como capital simbólico e é um exemplo, por ocasião de sua aquisição, da violência simbólica, não só pela imposição de legitimidade conferida pelo grupo dominante (o monopólio da legitimidade cultural dominante), como pela conversão cultural necessária para sua assimilação. (MEDEIROS, 2007, p. 22).

Sendo assim, a consideração da violência apenas como aquela que faz uso da destruição, das depredações, do vandalismo e da força física apenas parece ingenuidade, uma vez que existem também, envolvidas nesta seara, as relações sociais instauradas pela comunicação, pelo uso da palavra, pelo diálogo e também pelo que não é dito mas que é percebido. São os mecanismos relativos à violência simbólica, definida por Boudieu como aquela que “institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceber ao dominante (e, portanto, à dominação) quando ele não dispõe, para pensá-la e para se pensar, ou melhor, para pensar a sua relação com ele.” (BORDIEU, 1999, p. 47).
De certa forma, segundo Guacira Lopes Louro (1998), o ambiente escolar acaba reproduzindo diferenças que colaboram com práticas violentas:
Diferenças, distinções, desigualdades... A escola entende disso. Na verdade, a escola produz isso. Desde seus inícios, a instituição escolar exerceu uma ação distintiva. Ela se incumbiu de separar os sujeitos – tornando aqueles que nela entravam distintos dos outros, os que a ela não tinham acesso. Ela dividiu também, internamente, os que lá estavam, através de múltiplos mecanismos de classificação, ordenamento, hierarquização. A escola que nos foi legada pela sociedade ocidental moderna começou por separar adultos de crianças, católicos de protestantes. Ela também se fez diferente para os ricos e para os pobres e ela imediatamente separou os meninos das meninas. (p. 57).

Aqui se pode recorrer também ao que atesta Bourdieu:

Olhando para o conceito e para o sistema de ensino, Bordieu (1996a;2002a) afirma que a instituição escolar tem um papel determinante na reprodução da distribuição do capital cultural e, assim, na reprodução da estrutura do espaço social tornando-se, por esse motivo, uma aposta central nas lutas pelo monopólio de posições dominantes. (Bourdieu, p. 41-42, apud MEDEIROS, 2007).

Ao se falar em violência, também há que se levar em consideração as questões que envolvem a lesbofobia, a homofobia e a transfobia6 que na escola têm entre outras conseqüências a  contribuição, de forma decisiva, para a negação do direito fundamental à educação legitimado pela Constituição Federal de 1988, Lei maior desse país, às pessoas que apresentam uma manifestação da sexualidade ou uma identidade de gênero diferente da esperada pela sociedade contemporânea. Essas ações agressivas acabam por contribuir para o aumento de profissionais do sexo nas ruas. (Berenice BENTO, 2008).
Nesse tipo de violência, o que se pode perceber é a existência de uma legitimidade social e de uma íntima ligação com a violência de gênero, pois ainda hoje o respeito à lesbiandade, à homossexualidade, à travestilidade e à transexualidade, constitui-se numa dificuldade para a sociedade contemporânea em geral e os sujeitos que possuem desejo afetivo-sexual orientado a pessoas do mesmo sexo, ou não se reconhecem no seu corpo biológico, são tratados comumente com intolerância, desrespeito, preconceito e discriminação. (LOURO, 1998).
No ambiente escolar não é diferente já que, “...muitas vezes, os professores não apenas silenciam, mas colaboram ativamente na reprodução de tal violência.” (ABRAMOVAY, Miriam, CASTRO, Mary Garcia e, SILVA, Lorena Bernadete da, p. 278).
    Da mesma forma, é importante discutir a violência sexual que se manifesta de  inúmeras maneiras: o assédio sexual, a sedução, o atentado violento ao pudor, a prostituição infantil, a pedofilia, o estupro, o incesto, dentre outras tantas, que muitas vezes, segundo dados da UNESCO, se:
decolam de reconstruções do sexual, de resignificações do corpo, de relações afetivas e da libido e se reforçam por estereótipos e discriminações contra o outro. É quando, por exemplo, o sistema de gênero – as assimetrias entre os sexos e a objetificação do corpo da mulher em função do desejo do outro –, colaboram para práticas de violências, abusos e assédios e na valorização e tratamento do negativo, em nome de desejos e até de afetos. (ABRAMOVAY, da, p. 256).

Diante disso, cabe então problematizar essas formas de violência na escola por meio de uma discussão mais crítica, inserida nos conteúdos das várias disciplinas escolares da Educação Básica e, ainda analisar as atitudes e posturas adotadas pelos sujeitos da escola. Uma possibilidade de ação poderia ser a adoção de uma prática de linguagem não-sexista, que produz posicionamentos de sujeitos com igualdade de direitos e de oportunidades na escola, independente do seu sexo.
No entanto, esse encaminhamento não se reduz a meras atitudes mecânicas ou automatizadas de acrescentar ou substituir por um “a” ao final das palavras masculinas, ou utilizar termos que podem se referir aos dois sexos, ou ainda a se utilizar o masculino e o feminino das palavras. Consiste sim, na legitimação da igualdade de espaços de direitos em nossa sociedade. Exemplos citados também por Guacira Lopes Louro (1998) denunciam a importância do uso que os sujeitos sociais fazem da linguagem: “[é] impossível esquecer que uma das primeiras e mais sólidas aprendizagens de uma menina, na escola, consiste em saber que, sempre que a professora disser que ‘os alunos que acabarem a tarefa podem ir para o recreio’, ela deve se sentir incluída. Mas ela está sendo, efetivamente, incluída nessa fala?” (p. 66, grifos da autora).
Ao considerar a escola como o espaço social privilegiado para a discussão dos conhecimentos historicamente produzidos e que a neutralidade é uma característica distante das ações humanas, não é possível mais que se concorde com as falácias de igualdade entre os seres humanos, enquanto as práticas sociais evidenciam exatamente uma situação inversa. As diferenças estão presentes no mundo e é a partir delas que se constituem as identidades das diferentes pessoas  e que os diferentes grupos humanos apresentam-se na sociedade.
O ambiente escolar atual que encerra a convivência de diversos grupos humanos, tendo em vista as mudanças sociais das últimas décadas, evidencia o surgimento de conflitos e de idéias contrastantes no que se refere à pluralidade e multiplicidade de relações interpessoais na escola. Em relação às sexualidades e às relações entre os gêneros, as discussões presentes na escola sejam talvez as mais polêmicas e difíceis, por envolverem não só conceitos científicos diversos, como também aqueles imbricados em dogmas religiosos, senso comum, preconceitos e discriminações, que –  aliados a uma formação inicial incipiente das/dos professoras/es, segundo elas/es mesmos –  gera a apropriação e aplicação de um currículo escolar que ignora, trata com superficialidade e preconceito ou desconsidera o assunto.
Os posicionamentos dos/das profissionais da educação em relação ao trabalho com esses assuntos são os mais variados. Entretanto se destaca uma postura pedagógica, se não oposta, pelo menos indiferente. E isso se justifica, na fala dos sujeitos, pela falta de conhecimento, pelos valores impetrados e/ou pelo receio de que o resultado do trabalho seja mal interpretado ou criticado.
Acrescentados a essas considerações, grupos resistentes à inserção dessa discussão no currículo justificam, em geral, que a abordagem desses assuntos pode estimular a iniciação e a prática sexual por parte das/os jovens mais cedo, acarretando, conseqüentemente, o aumento do número de adolescentes grávidas e de abortos.
No entanto, ao se pensar dessa forma, ignora-se a importância da abordagem da Educação Sexual em sala. Pensando especialmente no tratamento que é dado à orientação sexual (homo, hetero e bissexualidade), verifica-se o quanto a interferência de um currículo atento à formação escolar e à construção do sujeito social (e sexuado) é válida para problematizar pré-conceitos e atitudes discriminatórias. Embora a Constituição Federal de 1988 não contemple explicitamente a discriminação em relação à orientação sexual, em seus artigos 3º e 5º, pode-se entender que esta categoria de análise está implícita ao tratar da igualdade de direitos entre todos os seres humanos:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
II – Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei.
III – Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante.
X – São invioláveis a intimidade, a vida privada e a honra dos cidadãos (...).
No Estado do Paraná, duas leis dão amparo e abertura à prática de uma Educação Sexual na escola:
Lei nº 11.733, de 28 de maio de 1997
Autoriza o Poder Executivo a implantar campanhas sobre Educação Sexual, a serem veiculadas nos estabelecimentos de ensino estadual de primeiro e segundo graus do Estado do Paraná.

Lei nº 11.734, de 28 de maio de 1997
Torna obrigatória a veiculação de programas de informação e prevenção da AIDS para os alunos de primeiro e segundo graus, no Estado do Paraná.

Embora essas duas leis proporcionem uma abertura da discussão sobre sexualidade na escola, acabam, devido ao seu formato, referendando uma pedagogia de projetos, restringindo sua aplicação a datas ou semanas pontuais. Diante disso, a Secretaria de Estado da Educação do Paraná, em sua perspectiva concebe a sexualidade como uma abordagem necessária e essencial para a formação educacional.
Historicamente, questões ligadas à sexualidade na rede estadual de ensino do Paraná vêm sendo tratadas superficialmente nos ambientes escolares, dado as variadas concepções suscitadas  por parte das/doas gestoras/es da educação. A condição histórica em que as escolas públicas foram envolvidas, principalmente na última década, relaciona-se intimamente com a elaboração e a ampla distribuição dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental - PCN e dos Temas Transversais no ano de 1997.
Nesse contexto político educacional, a maioria das escolas públicas estaduais do Paraná passaram a adotar a metodologia de projetos como uma das únicas possibilidades de abordagem das questões referentes a esse assunto. Isso foi determinante para o esvaziamento dos conteúdos escolares e para uma invasão de ONGs e de empresas, que trabalham nas escolas a lógica neoliberal de educação, nas escolas.
Uma análise das propostas dessas organizações e empresas pode propiciar uma observação de que a fundamentação utilizada foi, geralmente, balizada em Valores Humanos, com ênfase em atitudes, procedimentos e conceitos não raras vezes determinantes de desigualdades sociais na escola.
Esse contexto evidencia uma formação teórico-metodológica que é muitas vezes insuficiente (já que o que vem sendo produzido em âmbito educacional  tende a tratar a sexualidade de forma fragmentada em ações pontuais por meio de temas “transversais”, como se observa em projetos de prevenção às DST/Aids, à gravidez na adolescência ou de “Dias disto ou daquilo”). Percebe-se, ainda freqüentemente, resistências individuais e/ou coletivas, além dos questionamentos e interferências de mães e pais.
A maioria das interferências relacionadas ao trabalho pedagógico com a sexualidade nas escolas, estão relacionadas diretamente a aspectos religiosos que não respeitam o que está posto no preâmbulo da Constituição Federal de 1988, o Estado laico. Em lugares públicos que contam com a presença de grupos de pessoas diferentes reunidas e se constituem em locais de sociabilização, dentre os quais a escola, é imprescindível que se respeite a diversidade humana. Respeitar a diversidade humana inclui respeitar a diversidade de crenças e credos religiosos, a diversidade sexual, a diversidade dos grupos humanos, entre outras.
Portanto, optou-se pela fundamentação em Direitos Humanos, em detrimento daquela que trabalha os valores humanos nas escolas, por ser uma preocupação em âmbito federal e estadual que prioriza a abordagem pedagógica dos conteúdos pertinentes à Sexualidade desprovida de preconceitos, discriminações, crenças e valores pessoais.
Fala-se muito em direitos, cuja gênese do seu significado encontra-se em  tudo aquilo que é correto, íntegro e justo;  direito é também o reconhecimento de que algo é devido, pois  se existe um direito é porque de outra banda tem-se uma obrigação correlata; segundo Norberto Boobio (2004, p. 35) “[o] indivíduo é titular de direitos e de deveres.” Entretanto, falar em direitos num país multifacetado como o Brasil e tão cheio de sedimentadas e solidificadas desigualdades, é tarefa árdua, já que parte significativa da população tem direitos elementares sendo recorrentemente desrespeitados.
O sujeito, enquanto dententor de direitos, tem e deve ter no princípio da dignidade da pessoa humana o seu maior fundamento; portanto, todas as pessoas devem ser tratadas com dignidade, não importando a sua raça, etnia, idade, credo cor, gênero, profissão ou orientação sexual, já que de acordo com Ingo Wolfgang Sarlet (2002):
[...] todos os seres humanos são dotados da mesma dignidade, noção esta que se encontra, por sua vez, intimamente ligada à noção de liberdade pessoal de cada indivíduo (o Homem como ser livre e responsável por seus atos e seu destino) bem como à idéia de que todos os seres humanos, no que diz com a sua natureza, são iguais em dignidade. (p. 31)

    Contudo, de acordo com o já mencionado Bobbio (2004), parte-se:

[...] do pressuposto de que os direitos humanos são coisas desejáveis, isto é, fins que merecem ser perseguidos e de que, apesar de sua desejabilidade, não foram ainda (todos eles por toda parte e em igual medida) reconhecidos; e estamos convencidos de que lhes encontrar um fundamento, ou seja, aludir motivos para justificar a escolha que fizemos e que gostaríamos fosse feita também pelos outros, é um meio adequado para obter para eles um mais amplo reconhecimento. (p. 35-36)

As discussões propostas neste artigo estão fundamentadas também no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos – PNEDH (2006),
que resulta da articulação envolvendo os três poderes da República, especialmente o Poder Executivo (governos federal, estaduais, municipais e do Distrito Federal), organismos internacionais, instituições de educação superior e a sociedade civil organizada. (BRASIL/CNDH/MEC, p.10).

Este documento fundamenta também a inserção dessa discussão no currículo da Educação Básica, quando indica como uma das Ações Programáticas previstas para a Educação Básica:
fomentar a inclusão, no currículo escolar, das temáticas relativas a gênero, identidade de gênero, raça e etnia, religião, orientação sexual, pessoas com deficiências, entre outros, bem como todas as formas de discriminação e violações de direitos, assegurando a formação continuada dos(as) trabalhadores(as) da educação para lidar criticamente com esses temas (p. 24).
Com isso, pode-se perceber que é impossível conceber em tempos atuais a construção de um currículo que não contemple a Sexualidade inserida nos conteúdos das várias disciplinas da Educação Básica.
Diante disso e, considerando os princípios desta gestão, especialmente o de atendimento a diversidade cultural, a partir de 2007, a Secretaria de Estado da Educação, atualmente, por meio da Diretoria de Políticas e Programas Educacionais – Coordenação de Desafios Educacionais Contemporâneos7, intervém na realidade escolar no que se refere às questões da abordagem da Sexualidade nas escolas por meio da formação continuada e da produção de materiais de apoio pedagógico às professoras e professores da rede estadual de ensino que ministram as diversas disciplinas escolares da Educação Básica.
Assim, a proposta é de ampliar e de sistematizar as discussões acerca da implementação do que precede a legislação sobre o tratamento pedagógico da sexualidade nas escolas, inserindo-as no currículo, por meio dos conteúdos elencados nas Diretrizes Curriculares para a Educação Básica do Estado do Paraná. Ainda nesse sentido, são levados em conta a vulnerabilidade, a legislação de apoio, a influência da mídia na sexualidade (erotização da infância e juventude), violência relacionada à sexualidade, diversidade sexual na escola, exploração sexual e prostituição de crianças, jovens e mulheres, preconceito e discriminação, prevenção às DST/Aids, gravidez na adolescência, interfaces entre gênero, sexualidade e relações étnico-raciais, as diferentes constituições familiares.
    As ações desenvolvidas pela SEED8 compreendem Grupos de Estudo aos sábados, com o objetivo de proporcionar um espaço e um tempo para que as docentes e os docentes possam se reunir e discutir criticamente sobre a abordagem pedagógica da sexualidade nas escolas públicas estaduais. Cursos de formação continuada, como o realizado em 2007 em parceria com a Secretaria de Estado da Saúde – SESA, cuja carga horária foi de 48 horas, com as técnicas e os técnicos-pedagógicos dos Núcleos Regionais de Educação e com as técnicas das Regionais de Saúde do Estado, com vistas a viabilizar um trabalho conjunto entre educação e saúde na abordagem da sexualidade nas escolas, numa concepção pedagógica que priorize os conteúdos escolares para além da prevenção e promoção da saúde (DST/Aids e gravidez na adolescência).
    A SEED prepara também a implementação do projeto Saúde e Prevenção nas Escolas – SPE, proposto pelos Ministérios da Educação e da Saúde. O foco deste projeto é a prevenção e promoção da saúde. Em conjunto com as concepções e encaminhamentos pedagógicos da SEED esse projeto pode subsidiar o trabalho pedagógico no que se refere à Sexualidade nas escolas.
Está em processo licitatório também um material de apoio pedagógico para as professoras e professores da rede estadual de ensino, denominado I Caderno de Sexualidade, que consiste em uma coletânea de artigos de profissionais renomados nas discussões de gêneros e sexualidades. Além dos artigos, um diferencial deste material consiste num DVD contendo dois programas de fundamentação teórico-prática, produzidos em conjunto com a TV Paulo Freire, intitulados Nós da Educação – Questões de gênero na escola, com a professora Dra. Guacira Lopes Louro e Nós da Educação – Educação Sexual na escola, com a professora Dra. Jimena Furlani.
O caderno integra uma coleção de materiais organizados pelas equipes da SEED chamada Série Cadernos Temáticos da Diversidade, nos quais serão abordadas questões referentes à História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, ao Enfrentamento à Violência nas Escolas, à Educação Ambiental, à Educação Fiscal e à Prevenção ao Uso Indevido de Drogas.
A produção desses materiais, bem como a organização de cursos de formação continuada referendam a concepção desta Secretaria de Estado da Educação em fomentar a discussão crítica nas escolas e em propiciar fundamentação teórico-metodológica consistente para as professoras e professores da rede estadual, sem o esvaziamento dos conteúdos escolares, tendo em vista a garantia de uma escola pública, gratuita e de qualidade, propiciando um processo de escolarização que garanta, efetivamente, o acesso e a permanência de todos os sujeitos.
Ao assumir tal postura de promover a ampliação dos estudos sobre a sexualidade, o Estado do Paraná avança rumo à efetiva promoção de igualdade de direitos por estabelecer uma possibilidade de a escola repensar seus objetivos, sua proposta e seu currículo no sentido de construir uma educação que contemple a diversidade da qual os seres humanos fazem parte.
Referências
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_________. Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher e dá outras providências. Disponível em: http://www6.senado.gov.br/legislação/ListaPublicacoes – último acesso em 02 set 2007.
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