A Liga Brasileira de Lésbicas - LBL é uma expressão do movimento social que se constitui como espaço autônomo e não institucional de articulação política, anticapitalista, antiracista, não lesbofóbica, não homofóbica e não transfóbica. De âmbito nacional, é uma articulação temática de mulheres lésbicas e bissexuais, pela garantia efetiva e cotidiana da livre orientação e expressão afetivo sexual.
Texto - Sexismo emburrece e mata
Sexismo emburrece e mata
Por: Conceição Oliveira, no twitter: @maria_fro
Show de horrores
Há três semanas tento digerir um verdadeiro show de horrores noticiado. Os detalhes sórdidos de mais um feminicídio anunciado, o de Eliza Samúdio, tomou a mídia grande, a blogosfera e até os sites pornôs. O principal suspeito é Bruno, ex-goleiro do Flamengo e possível pai do filho da vítima, que ao que tudo indica foi seqüestrada, torturada, morta e teve partes de seu corpo dadas aos cães. A barbárie se esmerou nos textos jornalísticos e nos comentários que voltaremos a discutir ao longo deste longo texto. Tomem fôlego.
Houve também o caso de estupro de uma adolescente, praticado por mais três adolescentes em Santa Catarina. O crime primeiramente foi denunciado por um blog local, o Tijoladas, e com bastante atraso chegou à grande mídia. O estupro ocorreu na casa de um dos adolescentes agressores que é membro da família de um dos principais donos da RBS (a maior empresa de mídia do Sul do país). O outro é filho de um delegado. Segundo relatos no referido blog, com requintes exibicionistas um dos adolescentes estupradores postou em redes sociais mensagens informando que estuprou a menina. Ao ser questionado se não tinha medo de ser punido, respondeu com desdém: ‘Tá de zoeira?’.
Nesse caso, que chegou a TV Record por Paulo Henrique Amorim, que se comprometeu a acompanhar de perto o desenrolar do processo, tivemos o desprazer de ouvir mais um depoimento cínico. No Domingo Espetacular, o delegado da polícia civil que investigava o caso disse que – em relação à adolescente que teve até um controle remoto introduzido em sua vagina – é possível afirmar que houve ‘relação carnal’, mas que não poderia falar em estupro na medida em que ele não estava presente. O delegado ainda insinua que o estupro de uma menina de 13 anos, realizado por três adolescentes violentos e protegidos pelos pais, teria sido na verdade uma relação sexual de comum acordo entre a vítima e os agressores.
Segundo relatos, a mãe do garoto da RBS, após saber o que tinha acontecido, maquiou as escoriações do pescoço da garota (que estava sob efeitos de álcool e possivelmente outras drogas), ligou para os pais da menina para que viessem buscá-la e deu a entender que ela estava em uma ‘festinha’. O comentário do delegado catarinense é da mesma categoria do de Demóstenes Torres (DEM) que, na luta contra as cotas no Senado, afirmou que senhores escravocratas mantinham com mulheres escravizadas relações consensuais.
Uma semana depois das declarações na tevê, o delegado foi exonerado do cargo e o presidente da Associação dos Delegados de Santa Catarina lamentava o fato. Eu lamento o nível desses delegados.
A misoginia e o sexismo andaram soltos também na verve de cartunista, ‘jornalista’ e ex-presidente. Nani, cartunista da velha guarda do Pasquim, jornal de resistência à ditadura militar, retratou a coligação do PT com o PMDB como prática de prostituição. Desenhou a candidata Dilma Rousseff rodando bolsinha na esquina e pôs na boca dela expressões de prostituta. Curioso que a coligação do PSDB com o DEM não mereceu o mesmo tratamento. Josias de Souza, blogueiro da Folha/UOL, que já havia associado Dilma e Marta Suplicy aos termos ‘vadias’ e ‘vagabundas’, expõe a charge no seu blog, acrescida do título que Nani não deu originalmente: “Candidata de programa!” Nani havia dado o seguinte título: “Programa de Dilma depende dos partidos”. Ambos são lamentáveis, mas Josias se esmerou na detratação.
O que todos esses casos têm em comum? Todos eles estão permeados de sexismo, todos são resultados de como nós mulheres somos vistas numa sociedade que ainda mantém fortes traços de patriarcalismo.
Da Esquerda à Direita os ‘companheiros’ se esmeram no sexismo
Há exemplos a perder de vista de uma linguagem e comportamento chauvinista em nossa sociedade. Para não cansar os leitores com muitos exemplos, recordo apenas alguns casos.
Em março de 2010, para atacar FHC, Ciro Gomes disse que o ex-presidente tinha uma ‘inveja feminil’ de Lula. Não bastou a Ciro qualificar o ex-presidente como uma pessoa invejosa, ciumenta. Para tornar mais ácido seu ataque ao adversário político, ele associou o sentimento de inveja ao sexo feminino. Fez uso de uma idéia fortemente presente no senso comum de que as mulheres são seres ‘invejosos por natureza’. Desse modo, reforçou o preconceito e atingiu o seu objetivo de desqualificar o adversário, não apenas no campo político, mas também no universo dos machos que dominam o campo da política institucional do Brasil.
Fernando Henrique Cardoso e seus aliados de partido não deixam por menos. É recorrente no discurso do demotucanato que Dilma é ‘sombra’, ‘boneco’, ‘retrovisor’, ‘poste’ de Lula. Enfim, em vários textos e discursos, antes mesmo da largada para a campanha eleitoral, pululam termos que buscam desqualificar a mulher e a política Dilma Rousseff como uma candidata sem méritos próprios.
Em fevereiro de 2010, FHC, em artigo publicado na imprensa nacional, disse que “eleições não se ganham com o retrovisor“, comparando Dilma a um ‘boneco manipulado’ pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Naquele mesmo mês, na tribuna do Senado Tasso Jereissati (PSDB-CE) disse que a petista “é uma liderança falsa, de plástico, de silicone”.
FHC esqueceu a elegância da Sorbonne e até da sociologia de que tanto se orgulha e novamente focou a imagem feminina de Dilma com veios de ironia:
“a encenação para a eleição de outubro já está pronta. Como numa fábula, a candidata do governo, bem penteada e rosada, quase uma princesinha nórdica, dirá tudo o que se espera que ela diga, especialmente o que o mercado e os parceiros internacionais querem ouvir”.
O ex-presidente, que nem o PSDB sabe o que fazer com ele, pinta Dilma como uma mulher fútil, que é só aparência, vazia de conteúdo, não é um sujeito histórico, não pensa por si, é facilmente manipulada, mas não pára por aí. Sua misoginia usa também da ironia em relação à idade de Dilma. A candidata do PT é uma mulher que brevemente será avó e, mesmo assim, sua figura é comparada à imagem de uma ‘princesinha’. Os mais ogros, sem os subterfúgios do discurso fhceniano, usam outros termos para se referir às mulheres maduras na política. Eduardo Guimarães fez um texto interessante chamando atenção sobre isso. Quanto ao ‘nórdica’ nem precisamos dizer que seu uso também é proposital: uma forma de destacar a origem étnica e social de Dilma — uma mulher branca, bem educada. O recurso de FHC, aqui, é negativar e descolar a origem social da candidata do PT em contraponto com as origens populares de Lula, na medida em que todo o preconceito social repetido e reproduzido contra Lula, o ‘analfabeto’ não surte mais efeito na maioria da população, diante de um presidente que bateu todos os recordes de popularidade na história do Brasil e que ganhou a projeção e respeito internacional das quais FHC jamais se aproximou.
Marcos Coimbra ao analisar aquele texto de FHC problematiza: se o adversário político dos tucanos na disputa eleitoral pela presidência da República fosse um homem, FHC certamente não se preocuparia com a aparência. Concordo com ele, não vejo na fala das poucas mulheres presentes na política institucional o uso de atributos físicos ou ausência deles para desqualificar seus adversários. Exemplos como o de Soninha Francine, que desenvolveu um ódio visceral de Marta, são mais raros. As mulheres que ocupam cargos públicos costumam não destratar as demais, desqualificando-se mutuamente, reforçando preconceitos de gênero. Isso me parece ser prática comum aos políticos do sexo masculino. É saudável, para toda sociedade brasileira, termos candidatas disputando o pleito de 2010 e com condições de vitória.
E quanto ao Nani? O cartunista, após a publicação da charge sexista, chegou a se defender das críticas dos comentaristas de esquerda, lembrando que já tinha retratado Serra e FHC como ‘prostitutas’. A fixação de Nani pelo tema da prostituição como algo condenável e a associação recorrente que o cartunista faz da prostituição à prática política não podem ser usadas como desculpas para falta de humor travestido de preconceito.
Alguns amigos jornalistas de esquerda também demonstraram surpresa com o fato de um cartunista do ex-Pasquim ter sido tão apelativo e preconceituoso. Não me surpreendi. Convivo com muitos amigos de esquerda que têm grande dificuldade de entender o mundo para além da luta de classes. Muitos deles de fato se esforçam cotidianamente para vencer sua cultura machista. Já conseguem enxergar que a dominação masculina sobre as mulheres é estrutural, conseguem perceber a necessidade de se respeitar a construção de outras identidades. Mas abolir de nossas vidas preconceitos é um exercício cotidiano que nem todos estão dispostos.
A turma do Pasquim fez uso do humor, da ironia e irreverência para resistir à ditadura militar, mas seus cartunistas e editores foram bastantes conservadores em relação à emancipação feminina e se opuseram firmemente a toda e qualquer luta das mulheres nesta direção. Às denuncias das feministas brasileiras sobre o caráter estrutural da dominação, expresso nas relações da vida cotidiana, o Pasquim respondia com sarcasmos e zombarias. Como mostra o excelente artigo de Rachel Soihet, “Zombaria como arma antifeminista: instrumento conservador entre libertários”, o jornal que lutava contra o regime de exceção:
“(…) voltou-se, igualmente, contra as mulheres que lutavam por direitos ou que assumiam atitudes consideradas inadequadas ao modelo tradicional de feminilidade e às relações estabelecidas entre os gêneros. Ridicularizavam as militantes, utilizando-se dos rótulos de ‘masculinizadas feias, despeitadas’, quando não de ‘depravadas, promíscuas’, no que conseguiam tais articulistas grande repercussão. Depreende-se dessa conduta o temor da perda do predomínio masculino nas relações de poder entre os gêneros, no que evidenciavam forte conservadorismo, contrastante com a atitude vista como libertária de alguns desses elementos em outras situações.”
Geni insepulta: pré-julgada pelo currículo sexual, viva ou morta
Como disse, passei essas últimas semanas com o estômago embrulhado diante das notícias em portais, blogs, e sites pornôs (sim, fiz questão de visitá-los para ver até onde ia a barbárie sexista). Mas não vou me ater a espetacularização irresponsável da polícia e da imprensa, que anda facilitando a vida da defesa do ex-goleiro Bruno, sendo ou não ele culpado pela morte de sua ex-namorada. A este respeito indico dois bons textos.
O primeiro é do procurador da República, o professor Vladimir Aras, especialista em Direito Criminal, (aqui) que nos lembra que há muita tecnologia para ser usada nas investigações. Ele argumenta que diante do fato dos suspeitos estarem utilizando o direito ao silêncio, o Ministério Público/MG pode, por exemplo, propor acordo de delação premiada ao suspeito certo, pois isso ajudaria a remontar os eventos e localizar o cadáver da vítima ou as provas necessárias para condenar os executantes do crime, mandantes etc. O segundo é o texto do jornalista José Cleves Silva, especialista em investigações de corrupção policial, envolvimento da polícia com tráfico de drogas, armas e assalto a bancos em Minas Gerais. Ele tem larga experiência no contato com a polícia mineira e também foi vítima dessa polícia que não difere muito das dos demais estados: adoram um holofote. Vale a pena ler o seu texto sobre a ação da polícia mineira no caso Bruno, considerando também que o jornalista foi acusado de ter matado sua própria esposa e foi inocentado por unanimidade.
Não foi apenas o espetáculo grotesco da mídia grande impressa e televisiva, que adora as lucrativas notícias de assassinatos brutais envolvendo sexo e celebridades, que causaram espanto a todos aqueles que têm consciência de que vivemos em uma sociedade chauvinista, mas também os comentários grotescos de machistas moralistas e, igualmente, de mulheres que contribuem para disseminar o machismo.
“(…) Se essa maria chuteira não tivesse pegado tanto no pé do Bruno, não teria morrido. Disse a Margarida neste espaço, e foi muito contestada, que se você vê um maremoto sai correndo. Eliza já havia sido ameaçada de morte e, mesmo assim, continuou pegando no pé do Bruno. Ela podia reivindicar seus direitos na Justiça sem ir de Range Rover ao sítio do doidão. Mas, provavelmente, ela era do tipo chiclete.(…) (Trecho de comentário no Viomundo).
Veja e alguns comentaristas do Viomundo – que adoram criticar o jornalismo ‘de esgoto’ daquele semanário — encontraram-se no mesmo sentimento de ignorar o fim trágico de Eliza, culpá-la pela própria morte e lamentar o fato de um ex-favelado, que finalmente ascendeu socialmente, ter jogado o ‘seu futuro’ pela janela, só por causa de uma ‘biscate’. Em todos eles, expressões como: ‘Maria Chuteira’, ‘interesseira’, ‘piranha’, ‘pegajosa’, ‘chiclete”, ‘puta’ etc. se mesclavam e se complementavam.
Mayara Melo fez um excelente texto a respeito deste tratamento ignóbil dado à vítima Eliza Samúdio e teve a paciência de elencar alguns, dissecando-os.
“Trouxa, você fez filho pra pegar pensão? Então cala a boca! Puta é isso. Mulher que faz filho pra mamar dinheiro dos outros, seja quem for! Vagabunda se ferrou!” ou “Estou triste pelo jovem Bruno, um homem realizado na vida profissional e financeira e acabar tudo por causa de um envolvimento com mulher de programa, filho é feito em mulher decente e de honra que isso sirva de exemplo para os homens”.
Ainda há aqueles que disparam, sob moderado pudor: “Era uma aproveitadora, mas ninguém tem o direito de tirar a vida de outra pessoa, por pior que ela seja.”
Wladimir Aras definiu com precisão a condenação pública da vítima: “Eliza Samudio é uma Geni insepulta. Provavelmente está morta. Mas continua apanhando!”
Nem sua morte foi capaz de calar seus detratores moralistas. Eliza, ainda grávida, foi seqüestrada, sofreu agressões físicas, foi obrigada a tomar substâncias abortivas e quando pediu socorro ao Estado, porque sua integridade física e a do seu filho foram ameaçadas, não obteve proteção garantida pela Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), porque uma juíza conservadora julgou moralmente a mulher Eliza e ignorou o art. 5º, inciso III:
“Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.” (Fonte: Wladimir Aras).
Como este texto pode ter sido interpretado de outra maneira no caso de Eliza Samúdio? O preconceito incrustado na mente de nossos juízes pode explicar a decisão. Eliza foi pré-julgada pelo seu currículo sexual, condenado moralmente: seu comportamento tornou-a uma pessoa cuja vida vale menos que a das demais.
Para que pudéssemos refletir e agir sobre uma doença social que torna as mulheres vítimas da violência de seus companheiros ou ex-companheiros o Estado teria de fazer valer as leis que garantam nossos direitos. Nossa imprensa poderia ajudar fazendo menos bandalheira e recorrendo mais às análises históricas, antropológicas, sociológicas, políticas sobre as causas do sexismo. Mas restou aos leitores conservadores e consumidores de tragédias as reduções psicologizantes e empobrecedoras que pulularam em todos os meios de comunicação.
Ao abordar este feminicídio Fátima Oliveira fez a crítica a esta abordagem irresponsável, criticou seus pares e mostrou como o conservadorismo de uma juíza que prejulgou a conduta de Eliza, negando-lhe a proteção do Estado, tornou o próprio Estado co-autor de um crime:
(…) é antiético que psicólogos, psiquiatras e psicanalistas se encarapitem na mídia, como papagaios de piratas, chutando que fulano, sicrano ou beltrano é isso ou aquilo outro.
“Nem todo homicida é sociopata. Nem todo sociopata mata, mas pode virar assassino se a lei não comparece para punir outros delitos, pois portam personalidades a quem só a lei dá limites (…)
Eterno ser imperfeito, objeto de prazer, consumo ou de pancada de outrem
Seria saudável para todos nós se tragédias anunciadas como a morte de Eliza Samudio ou o estupro da adolescente de 13 anos por outros três adolescentes na casa de um deles, servissem para que Estado e sociedade como um todo refletissem e agissem para diminuir o número escandaloso de mulheres assassinadas ou estupradas por seus companheiros diariamente no Brasil. Teríamos menos Elizas, Mércias, Eloás, Julienes e seus bebês, Marias Islaines, Orestinas…
Nossa taxa de feminicídio é bem superior à média de outros países. Segundo o Mapa da Violência no Brasil no período de 1997 a 2007 dez mulheres foram assassinadas por dia, na maioria por seus companheiros atuais ou antigos maridos ou namorados. Segundo Mayra Kubik Mano, a cada quinze segundos uma mulher é espancada no Brasil!
A antropóloga Debora Diniz com muita propriedade argumenta: “A violência não é constitutiva da natureza masculina, mas sim um dispositivo cultural de uma sociedade patriarcal que reduz os corpos das mulheres a objetos de prazer e consumo dos homens.”
Quando temos consciência de que não é natural o desrespeito e, não raro, a violência física, moral, psicológica com que somos tratadas e denunciamos, somos ridicularizadas com o velho e recorrente discurso que nem mesmo os editores e chargistas do Pasquim abriram mão.
De nós é exigido um corpo belo mesmo que não sejamos modelos ou atrizes pornôs. Não basta que, como qualquer ser humano, tomemos banho todos os dias, escovemos os dentes, lavemos as mãos, cortemos as unhas. Tudo em nós é visto e tratado ‘por natureza’ como algo imperfeito que precisa ser arrumado, extraído, modificado: unhas precisam ser ‘feitas’, cabelos precisam ser alisados ou enrolados ou tingidos, os pêlos extraídos das pernas, virilhas, axilas, buço, sobrancelhas, a pele precisa passar por seções torturantes de extração de cravos, manchas; as rugas precisam desaparecer, assim como gorduras, estrias, celulites.
Nosso corpo ainda é coisificado e muitas vezes nos cansamos e nos adequamos. Vivemos, aceitamos e cultuamos a juventude e um determinado padrão de beleza (geralmente branco, magro, loiro e de olhos azuis) e relegamos ao segundo plano todo ser ‘imperfeito’ fora deste padrão. Permitimos que meninas negras com apenas sete anos sejam eletrocutadas no banheiro devido a um curto circuito em uma maldita chapinha usada para transformar seus cabelos crespos ‘imperfeitos’ em algo ‘apresentavel’.
Fazemos as mulheres depois dos quarenta serem muitas vezes tratadas como ridículas, porque querem recuperar sua juventude a qualquer custo.
Se a mulher exige de nós o direito de envelhecer com dignidade alcunhamos a de ‘tia velha, mal-humorada’. Se tem consciência de que sua experiência sexual permite que todo o seu corpo, com ou sem gordurinhas e celulites, ou alguns fios de cabelo branco, exerça desejos; se ela sabe que nada disso a impossibilita de dar e obter prazer junto ao seu companheiro, também não é valorizada.
Não criamos caprinos, devemos formar homens e mulheres saudáveis
Pré-julgamos mulheres que não seguem as normas impostas pela falocracia, mas consumimos o corpo feminino oferecido em diferentes suportes midiáticos.
Nossos valores tão deturpados permitem que jovens adolescentes tenham, por vezes, seu primeiro contato com a prática sexual expondo seu corpo e da parceira no mundo virtual.
A rede SaferNet, por exemplo busca orientar pais e responsáveis sobre exposição da sexualidade:
Não há nada de errado em falar e discutir sobre sexualidade. O erro é não se proteger e não se informar sobre como manter relações saudáveis dentro e fora do ciberespaço;
Proteja seus direitos sexuais e não facilite agressões;
Pais: dialoguem com seus filhos para conhecer o que fazem online e orientá-los. Os valores e limites de sua família precisam ser discutidos também em relação aos comportamentos online. Converse com seus filhos sobre as noções de privacidade e de comportamento de risco para construir limites como proteção e não como proibição;
Pais e educadores: Saiba que você não precisa ser expert em tecnologia, basta transpor a cidadania também para este novo ciber-espaço público;
SaferNet explica que o sexting, prática na qual adolescentes de 12, 13 anos de idade e jovens usam seus celulares, câmeras fotográficas, emails, chats, comunicadores instantâneos e sites de relacionamento para produzir e enviar fotos e vídeos sensuais de seu corpo nu ou seminu – assim como mensagens eróticas para namorados, pretendentes ou amigos – já se tornou moda entre adolescentes por aqui. Reportagem do Terra Magazine mostra a chegada no Brasil de um concurso no qual adolescentes e jovens gravam suas relações sexuais e postam no youtube. Ganha o que tiver mais acesso. A prática não é incomum entre estudantes de escolas de classe média desde pelo menos meados da década de 1990 quando ainda se usava fita VHS. Com a rede, os vídeos apenas são distribuídos em novos suportes e em nível planetário.
Diante desta exposição e permissividade a velha máxima patriarcalista que reduz nossas crias a caprinos em pastos – ‘segurem suas cabras, pois meu bode está solto’ – adquire novas colorações moralistas, renova-se em outros discursos, mas continua em voga. Reprimimos as meninas, reproduzindo os velhos papéis sociais desde a sua mais tenra infância, desde a escolha dos brinquedos.
Meninos recebem carrinho, bola, é permitido a eles até alguns excessos nas lutas com os amiguinhos. Aos leitores pacientes desde longo texto: faz algum sentido a idéia da violência, da valorização da força física no universo masculino parecer algo da essência dos homens?
Meninas recebem apetrechos de cozinha, bonequinhas para desde cedo adequarem-se a um papel naturalizado às mulheres: donas de casa, mães….
Não nos passa pela cabeça que, em pleno século XXI, as mulheres podem, se assim desejarem, jogar futebol e serem atletas excelentes como a Marta, que faz inveja a muito marmanjo apaixonado por futebol, ou que elas tornem-se exímias e cuidadosas motoristas e tenham, inclusive, descontos nas apólices de seguros de automóveis pelo seu comportamento mais civilizado no trânsito. Mesmo assim, elas continuam ouvindo dos ogros que não se civilizam – e acham que trânsito é praça de guerra: ‘volta para o tanque, Dona Maria!’ Os ogros são incapazes até de atualizarem suas ofensas: a venda de eletrodomésticos bate recorde atrás de recorde no Brasil e até as ‘donas Marias’ já compraram sua máquina de lavar roupas.
Para além de combater uma cultura midiática que estimula crianças e jovens a serem consumistas não apenas de objetos, mas de imagens femininas como produtos de consumo, é urgente que pais e professores revejam o quanto são responsáveis pela reprodução de uma educação sexista. Da mesma forma, é preciso refletir também na construção da identidade masculina, a valorização do macho como ‘provedor’, ‘ pegador’, ‘comedor’, desprovido de afeto.
Vários pesquisadores vêm se dedicando à temática da reprodução de preconceitos e discriminações no âmbito escolar. Marília Pinto de Carvalho, em pesquisa de campo junto a professores dos primeiros anos do Ensino Fundamental, investigando o fracasso escolar de meninos negros nas escolas públicas (grupo que permanece há décadas em primeiro lugar nas estatísticas), aponta-nos, por exemplo, que professoras têm imagens cristalizadas do que seriam comportamentos próprios e/ou adequados aos meninos e meninas, aos negros, aos brancos e aos pobres. Percepções sobre comportamento de gêneros, pertencimento étnico-racial e origem social interferem na avaliação e expectativa dos professores em relação à disciplina e desempenho escolar das crianças e por, sua vez, na construção de suas identidades.
Dos meninos, as professoras não costumam cobrar capricho nos cadernos e quando se deparam com um caderno limpo, bem cuidado, desenhado, que não pertence a uma menina se surpreendem. Muitas têm como pressuposto que os problemas de disciplina apresentados por crianças negras, especialmente meninos, estão invariavelmente relacionados ao:
“histórico da família desses alunos, alunos que moram em ambientes mais pobres, favelas, estão mais expostos a coisas cruéis, os modelos de adultos que essas crianças têm são pessoas mais rudes” (Depoimento de professora à Marília Carvalho).
Ao longo do trabalho a pesquisadora discutiu com as professoras entrevistadas os resultados parciais da pesquisa. Marília destaca que as professoras eram ‘jovens, comprometidas, sérias em seu trabalho pedagógico’, foram ‘corajosas e perspicazes ao longo de todo o processo’. Mesmo assim, suas avaliações em relação às crianças revelaram-se hierarquizadas:
“Mas se elas não eram abertamente preconceituosas nem discriminadoras, se gostavam de seus alunos e se dedicavam a eles, como suas avaliações revelaram-se tão marcadas por hierarquias de gênero, classe e raça?” (Marília Carvalho).
Precisamos tornar realidade princípios caros aos educadores: educar para autonomia, para o respeito e para a convivência solidária. Isso não pode ser apenas discurso vazio, tem de se tornar prática social. A filósofa Hannah Arendt, refletindo sobre a crise da autoridade, grosso modo, argumenta que toda geração adulta é responsável pela que a sucede. E adultos que abram mão desta tarefa crucial, deveriam também abrir mão de serem pais e professores.
Somos a maioria desempoderada e despolitizada
Nós, mulheres, somos maioria na população brasileira e, entre os cerca de 135 milhões de eleitores aptos a votar, representamos 52% contra 48% dos eleitores do sexo masculino, mesmo assim somos subrepresentadas:
“O balanço de registros em 2008 divulgado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mostra que a participação feminina na disputa por cargos eletivos é bem abaixo do percentual masculino. De um total de 375.655 registros de candidaturas para cargos nas prefeituras dos municípios brasileiros (prefeito, vice-prefeito e vereadores), apenas 74.837 (20,96%) eram de mulheres.” (Sandra Cruz, UNE).
Considerando as estatísticas de anos de estudo, as mulheres brancas são as mais educadas, mesmo assim, nem elas estão majoritariamente na política. Sandra Cruz aponta que nos cargos de maior nível hierárquico no parlamento, governos municipais e estaduais, secretarias do primeiro escalão do poder executivo, judiciário, sindicatos e reitorias as mulheres não chegam a 20%. Se além do gênero, consideramos o recorte étnico-racial, seja entre mulheres candidatas ou eleitas, o quadro de subrepresentação é ainda mais grave: as negras estão em minoria e as indígenas praticamente ausentes.
Nosso voto fará a diferença e é preciso que tenhamos muito claro quais as políticas propostas que realmente visam combater o sexismo e outras formas de discriminação.
Estejamos atentas às políticas que possam nos empoderar, que permitam que nossas crianças tenham acesso às creches, a uma boa educação, ao lazer, à cultura, a uma infância digna.
São fundamentais as plataformas políticas que defendam a saúde pública no país, a humanização da medicina e que não se exima de discutir, por exemplo, de modo amplo e democrático a discriminalização do aborto (que, mais uma vez, mata as mais pobres e dentre elas, as mulheres negras, em sua maioria sem recursos para clínicas médicas clandestinas). Também são importantes o papel de representação das mulheres na mídia, as cotas, micro-créditos, renda mínima cuja gestão dos recursos esteja nas mãos das mães de família etc.
Nestas eleições temos duas candidatas do sexo feminino. As duas com trajetórias políticas em partidos de esquerda. Dilma Rousseff, que ainda muito jovem lutou contra a ditadura militar, foi presa e torturada, e Marina Silva, ex-PT, que iniciou sua luta política com os seringueiros da Amazônia. Para além das diferenças partidárias (que na atualidade as opõem), elas têm feito um debate de alto nível. Dilma tem enfrentado uma campanha detratora e sexista, porque está na frente nas pesquisas eleitorais e porque não se exime de debater, por exemplo, a discriminalização do aborto como uma questão de saúde pública. Marina tem mais dificuldade para expressar uma posição objetiva em relação a esse tema devido suas crenças religiosas, mas não nega que seja uma questão de Estado.
Para encerrar, recorro a outro artigo do sociólogo Marcos Coimbra, que questiona uma falácia presente na grande mídia e no senso comum conservador. Trata-se da que afirma que mulheres não votam em mulheres.
Nesse artigo Coimbra discute a preferência do eleitorado a partir do recorte de gênero. O texto é de abril, quando Ciro ainda aparecia nas pesquisas de intenção de voto. Há três meses nas pesquisas eleitorais, Dilma e Marina, em todos os estados, tinham desempenho menor entre as eleitoras do que Serra e Ciro. A diferença, inclusive, entre Dilma e Serra era o voto feminino, já que a preferência do eleitorado masculino entre os dois candidatos era igualmente distribuída.
À época, Coimbra argumentava que um fator crucial para explicar as performances dos candidatos era o nível de conhecimento que os eleitores tinham deles. Ou seja, o fator relevante era a informação. Quando homens e mulheres possuíam nível de informação semelhante essas diferenças desapareciam:
“As pesquisas atuais refletem a distribuição desigual da informação entre os gêneros, que deriva, por sua vez, dos papéis sociais diferentes que homens e mulheres desempenham.” (Marcos Coimbra)
Posso garantir que este é um dado importantíssimo. Sou uma mulher educada, com acesso à informação, ativista, politizada. Mas também sou mãe, filha mais velha com pais idosos, tenho uma atividade profissional que demanda longo tempo de concentração, sou blogueira, twitteira, orkuteira, facebookeira.
Para conseguir fazer tudo isso, conto com ajuda da Ana, mensalista que trabalha em minha casa. Ana está de férias. Nos primeiros dias quase enlouqueci para dar conta de todas as demandas, como este texto que agora entrego a vocês e que foi redigido a conta-gotas entre lavar quintal do cachorro, controlar a máquina batendo roupa, ir às reuniões preparatórias do encontro de blogueiros, fazer almoço para a filha (que pegou na vassoura também)…
Então, mulherada, se vocês realmente acham que não podemos mais ser tratadas como seres eternamente imperfeitos, despolitizados, vadios e saco de pancadas, à luta, olho vivo e ação contínua para educar nossos companheiros e nossos filhos, meninos e meninas, para serem pessoas autônomas, colaborativas, respeitosas, mais livres e felizes.
Homarada, a formação de nossos filhos se concretiza quando o modelo está em sintonia com o discurso. O modo como tratam suas parceiras reflete na forma como seus filhos construirão suas futuras relações. Assim como, para que possamos nos informar e escolher a melhor candidatura que continue transformando positivamente o Brasil, precisamos de tempo livre. Saibam, portanto, que suas meias de futebol não vão sozinhas para a máquina de lavar roupas, sua comida não fica pronta se não for preparada e nem as panelas são auto-limpantes.
Se vocês também desejam que sua mãe, irmã, parceira e/ou filha sejam seres bem informados, politizados e autônomos, que tal sair da frente desta tela, convidá-las a ler este texto e se oferecer para lavar aquela pia de louça suja?
Sexismo emburrece e mata. Repensar os papéis sociais cristalizados para mulheres e homens nos liberta, permite que mudemos nossas atitudes, possibilita-nos fazer escolhas mais conscientes tanto na política quanto na vida.
http://www.viomundo.com.br/blog-da-mulher/sexismo-emburrece-e-mata.html
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