Maria José Rosado: É claro que o aborto é um tema que interessa à sociedade. Grande parte da população brasileira é formada por mulheres em idade reprodutiva. E o aborto ilegal é a quarta causa de mortalidade de mulheres. Agora, não faz sentido tratar do assunto a partir de interesses meramente eleitorais. É algo abominável. Nossos corpos, nossas vidas, não podem ser objeto de troca, de barganha eleitoral. Considero, isso sim, um desrespeito à vida.
MJR: A discussão está malposta, quando o que interessa é saber se alguém é contra ou a favor do aborto. A opinião pessoal dos candidatos e os valores pelos quais pautam suas decisões individuais só dizem respeito a eles.
MJR: O que importa para nós, cidadãs e cidadãos, eleitores, é conhecer os projetos de governo que serão depois implementados por quem pretende governar o País. O aborto é uma questão de saúde pública e é esse o âmbito em que deve ser discutido. A realidade atual é a que mulheres ricas conseguem ser atendidas em clínicas particulares. As mulheres pobres, negras em sua maioria, ficam expostas a morrer nas clínicas clandestinas. Diante da morte de milhares de mulheres, a maioria
delas mães de família, qual vai ser a política de governo proposta? Muitas mulheres que optam pelo aborto têm outros filhos. Valorizam o fator de ser mães. Muitas não desejam ter outros filhos ou filhas exatamente porque valorizam a vida daqueles que já têm e sua condição de pobreza não permite criar com saúde, dar uma boa educação.
MJR: A realização desse dom, dessa capacidade das mulheres de gerarem um ser humano, tem de ser livre, fruto de decisão e desejo. Os governos devem valorizar tanto a maternidade, enquanto realização dessa capacidade extraordinária que nós, mulheres, temos de fazer outros seres humanos, quanto garantir que esse dom se realize de forma digna. Por isso, também o direito de recorrer a um aborto sem colocar a própria vida em risco deve ser respeitado e possibilitado.
MJR: Esse não é um tema que possa ser submetido a princípios religiosos. As religiões podem propor determinado comportamento aos seus fiéis. Podem também propor à sociedade a discussão de suas ideias morais. Porém, em um Estado que não é teocrático, jamais esses princípios e valores podem ser impostos a toda a sociedade. O Estado não poderia, sob pena de violar a Constituição, submeter-se às religiões. Isso é a negação da democracia, das liberdades civis. Seria uma ameaça ao princípio de separação entre o Estado e a Igreja. Quanto à Igreja Católica, o que posso dizer é que não existe, ao longo de sua história multissecular, uma posição única sobre o aborto. Há, inclusive, posições teológicas favoráveis à decisão de uma mulher pela interrupção de uma gestação. No caso do Brasil, como de muitos outros países de maioria católica, as pesquisas demonstram que grande parte das mulheres que optam pelo aborto professa a fé católica. Outras religiões também não têm posições unânimes a respeito. Há discussões internas e divergências de interpretação dos códigos religiosos. Os credos não podem regular aquilo que é próprio do Estado: estabelecer políticas públicas que atendam aos interesses e às necessidades do conjunto da população. Pautar-se por princípios religiosos é infringir a Constituição. Isso não é ser contra a religião. Ao contrário. O Estado laico é que garante a liberdade religiosa, pois garante a todos o direito de professar a sua fé e, inclusive, o de não professar nenhuma.