quinta-feira, 14 de outubro de 2010

artigo de Débora Diniz - A questão do aborto influenciará o seu voto?






PERIGOS DA SIMPLIFICAÇÃO

O ESTADO DE S. PAULO, 1O DE OUTUBRO DE 2010

O tema que move os novos acordos políticos para o segundo turno à Presidência da República é o aborto. As principais avaliações políticas atribuem a queda de votos da candidata Dilma Rousseff ao seu programa de governo, que considera o aborto uma questão de saúde pública. Já Marina Silva teria crescido na reta final por sua proposta de um plebiscito para o aborto, e o candidato José Serra, por sustentar que a legalização do aborto iniciaria uma "carnificina no país". O único candidato a discutir abertamente o aborto, Plínio Sampaio, foi massacrado nas urnas. Com tantas questões cruciais à democracia e aos direitos fundamentais, como a educação, a segurança pública ou a previdência social, é curioso que se aposte que o novo presidente do Brasil seja decidido por sua posição sobre o aborto.

O aborto é um tema perigoso para a reta final das eleições. Na verdade, foi uma questão tratada com melindre pelos principais candidatos à Presidência nos debates públicos. Optou-se por um silêncio tenso, ocasionalmente desafiado pelos candidatos a deputados e senadores, para quem as questões relacionadas à família, à sexualidade e à reprodução compuseram a agenda prioritária de campanha. Teria a surpresa do segundo turno para presidente da República feito romper esse silêncio, sendo as eleições agora decididas pela posição dos candidatos sobre o aborto? Essa hipótese deve ser considerada aviltante para qualquer pessoa que acredita na democracia e na importância de campanhas políticas sérias. Sem riscos de exagero, essa guinada moral do debate deve ser comparada a práticas já repudiadas pela política, como a compra de votos ou o nepotismo.

A legalização do aborto não é uma moeda de troca política. É uma questão que diz respeito aos direitos fundamentais das mulheres. Por razões variadas e íntimas, as mulheres se veem diante de uma gravidez não planejada. Mulheres que jamais cometeriam um crime são forçadas a procurar auxílio em clínicas ilegais, em medicamentos adulterados ou em métodos ainda mais arriscados para realizar o aborto. Uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já abortou ilegalmente, em um misto de medo, solidão e risco. A história dessas mulheres não pode ser ignorada pela busca desenfreada por votos de comunidades religiosas que consideram o aborto um crime abominável. Não é demais lembrar que descriminalizar o aborto não significa nenhuma imposição do Estado às decisões reprodutivas das mulheres. Apenas será reconhecido o direito de escolha. Um direito íntimo e fundamental de escolher em que momento uma mulher deseja exercer a maternidade.

É perverso, senão injusto, reduzir a política brasileira ao aborto. O absurdo dessa constatação não está na moralidade do aborto, mas no que posições públicas sobre ele representarão de apoio ou não das comunidades religiosas. O que o tema do aborto nos mostra é o quanto a democracia brasileira ainda depende das religiões. Apelar para a tese de que o Estado é laico e que há separação formal entre as decisões políticas e as orientações das igrejas parece ser um discurso vazio neste momento. Sem qualquer acanhamento, os candidatos à Presidência saem à procura de como garantir o apoio das comunidades evangélicas e católicas, principais eleitores para quem a questão do aborto é considerada central.

Aos dois candidatos à Presidência da República, um lembrete. Não há saída. Ou se enfrenta seriamente o aborto como uma questão de saúde pública, seu impacto nos serviços de saúde, os danos à saúde das mulheres pela prática ilegal e a restrição de direitos que a criminalização impõe, ou teremos um retrocesso democrático semelhante ao enfrentado pelo governo Bush nos Estados Unidos, em que a saúde das mulheres foi subordinada à moral religiosa. Se não se sabe como enfrentar o tema do aborto nesses termos e ainda assim ganhar a eleição, um retorno ao silêncio tenso que marcou a campanha para o primeiro turno é a melhor estratégia política. É pelo menos honesto e não reduz a democracia brasileira ao útero das mulheres.

 

 

1Debora Diniz é Professora da Universidade de Brasília.

 

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